Em julgamento, conselho criticou minuta de marco regulatório da ANTT que restringe a concorrência entre ônibus interestaduais
Por JOTA | SÃO PAULO 22/11/2023 13:20

Foto: Unsplash
Desde 2020, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) discute um novo marco regulatório para o Transporte Rodoviário Interestadual de Passageiros (TRIP) – para estabelecer critérios para outorga de autorizações às empresas do setor para operação de linhas.
Prevista para outubro, a publicação da norma foi adiada para o 6º bimestre, ou seja, até o fim do mês de dezembro. Esta é a quinta prorrogação do prazo para divulgação das regras para as viagens rodoviárias interestaduais, que aguarda regulamentação há nove anos.
No atual regime de autorização, desenhado para estar em pleno vigor desde 2019, as empresas devem comprovar a capacidade de operar as rotas, mas sem licitação prévia e sem qualquer tipo de exclusividade, em liberdade de preços e igualdade de condições.
A Lei 14.298/2022, que mais recentemente alterou regras relativas ao regime de outorga, estabeleceu que “não haverá limite para o número de autorizações para o serviço regular de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, salvo no caso de inviabilidade técnica, operacional e econômica”.
Entre os pontos que a ANTT precisa regular, o enquadramento dos casos em que haveria inviabilidade econômica, impedindo a operação de novas empresas no setor, é um dos pontos que está gerando maior número de controvérsias no mercado.
A proposta mais recente da ANTT, apresentada em julho deste ano, pretende controlar – e em alguns casos, impedir – a entrada de novas empresas no setor com base na identificação de inviabilidade econômica, operacional e técnica da operação.
Para o cálculo da inviabilidade econômica, a ANTT sugere classificar os mercados em principais e subsidiários, em função da movimentação de passageiros nos últimos 12 meses.
A intenção é determinar quantos operadores poderão operar nos mercados principais e, nos mercados considerados saturados, não seriam concedidas novas licenças – o que colocaria entraves à concorrência. A questão é que as limitações atingiriam justamente os mercados principais, nos grandes centros urbanos e com maior fluxo de passageiros.
O assunto no Cade
No primeiro semestre, decisões do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Supremo Tribunal Federal (STF) caminharam no sentido de fomentar a concorrência no mercado de transporte rodoviário. Foi assim aberta a rota para a retomada das autorizações pela ANTT após dois anos de proibição.
Em abril, surgiu ainda um outro capítulo deste imbróglio, no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) – e que só meses depois parece ter sido desfeito.
Naquele primeiro momento, o posicionamento da autarquia era uma manifestação via ofício do superintendente-geral do Cade, Alexandre Barreto, em favor de restrições ao regime de autorização.
E a proposta da agência reguladora levou em conta esse documento, que não tem a assinatura de outros técnicos do órgão e foi solicitado pela própria ANTT.
No ofício, o superintendente-geral do Cade escreveu que “a livre competição do mercado e a livre concorrência não configuram uma política pública irrestrita, tendo em vista o risco de o serviço ser prestado com ofensa aos princípios […] da regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na prestação e modicidade das tarifas”.
Segundo Barreto, o excesso de oferta pode inviabilizar a prestação do serviço. “Delegar uma linha para um grande número de operadores pode levar a problemas de oferta e demanda, prejudicando a qualidade e a segurança do serviço prestado aos usuários”, completou.
Agora, a situação mudou. Isso aconteceu a partir de um voto dado, em outubro, por um conselheiro em um outro julgamento que não tratava da regulamentação do TRIP, mas que deixou claro o posicionamento do Conselho em relação à concorrência nesse setor.
No voto, o então conselheiro Luis Braido criticou a restrição a novos entrantes no mercado de viagens interestaduais de ônibus, com base na ideia de concorrência ruinosa que consta da minuta de regulamentação mais recente da ANTT.
“A teoria econômica aplicada ao transporte rodoviário de passageiros possui conclusão muito clara: inexiste razão para se dificultar a entrada de novas empresas nesses mercados, bastando ao poder público garantir a qualidade técnica dos equipamentos e a capacidade econômica de cada empresa para honrar com os serviços oferecidos e, eventualmente, vendidos com razoável antecedência”, escreveu Braido.
“O regime regulatório em revisão dá causa à alta concentração existente no setor”, comentou. “As barreiras regulatórias existentes necessitam ser revistas, de tal forma que situações de elevada concentração de mercado, como a vista neste processo, sejam eliminadas por meio do ingresso de concorrentes”, completou o conselheiro.
Divergência de posições
Braido foi o primeiro membro do Tribunal do Cade a comentar a nova minuta de regulamentação da ANTT. Até então, o único posicionamento da autarquia era a manifestação do superintendente-geral do Cade.
Na autarquia, a Superintendência-Geral funciona como uma primeira instância administrativa. Acima dela está o Tribunal Administrativo, composto pelo presidente do Cade e pelos seis conselheiros. Todos são indicados pelo presidente da República, e precisam ser aprovados pelo Senado.
Assim, a manifestação da Superintendência-Geral não é tida como representante da opinião do Cade como um todo. “A opinião do Cade se dá pela manifestação do plenário do Tribunal, nos casos em que decidir, ou pelo presidente do Tribunal quando estiver representando o Cade”, explica Eduardo Stênio Silva Sousa, sócio da Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados.
“O voto do conselheiro Braido foi importante para esclarecer que a posição do superintendente-geral não se confunde com a posição do Cade neste caso. A posição do conselheiro Braido está alinhada com a posição do Ministério da Fazenda e do MDIC [Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior] em prol de maior concorrência no mercado”, afirma o advogado Francisco Todorov, sócio do Tauil & Chequer Advogados.
Posição do Ministério da Fazenda
Em relação ao posicionamento do Executivo, outro órgão do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, a Secretaria de Reformas Econômicas (SRE) do Ministério da Fazenda também criticou a última proposta de regulamentação da ANTT, de julho de 2023.
“Não se identificou nos documentos disponibilizados pela ANTT, justificativa, com base em dados coletados ao longo dos 8 anos de vigência do regime de autorização, da premissa de que alguns mercados de TRIP sofreram degradação ou mesmo descontinuidade em razão de eventual excesso de oferta”, diz o parecer da SRE, entregue à ANTT em agosto.
A SRE recomendou a adoção do critério de inviabilidade técnica proposto na versão anterior da minuta, de 2022. O documento registra ainda que se identificou, na regulação proposta pela ANTT sobre inviabilidade econômica, potencial de limitar o número ou variedade de fornecedores, a concorrência entre empresas, as opções dos clientes e a informação disponível.
O parecer é assinado por Mauro Sanjad, especialista em regulação; Ana Patrizia Lira, subsecretária de Regulação e Concorrência; e Marcos Barbosa Pinto, secretário de Reformas Econômicas.
Entenda o que está em jogo
O regime de autorização para as empresas de ônibus poderem operar linhas interestaduais passou a valer em 2015, com a aprovação da Lei 12.996/ 2014. Deveria estar em plena vigência desde 2019, quando se encerrou o prazo de transição.
Antes disso, vigia o regime de permissão, no qual a implantação de novas rotas deveria ser feita por meio de licitações. No entanto, nunca houve licitação de fato; as empresas de ônibus vinham operando graças a um precário esquema de autorizações especiais ou devido a decisões judiciais.
Em março de 2021, uma liminar do TCU paralisou a entrada de novas empresas no mercado, a pedido de empresas que já atuavam no setor. A liminar só foi revogada em fevereiro deste ano, quase dois anos depois.
Na época, segundo a ANTT, estavam parados cerca de mil processos administrativos relacionados a novas autorizações, envolvendo 187 empresas e quase 150 mil novos mercados (isto é, pares de origem e destino em estados distintos).
Em março deste ano, o STF julgou que o regime de autorização é constitucional. O caso se arrastava na Corte desde 2016.
Enquanto a ANTT não publica o marco regulatório do Transporte Rodoviário Interestadual de Passageiros, uma resolução transitória da agência só concede novas licenças para mercados que hoje estão desatendidos, ou seja, em que nenhuma empresa opera.
“No regime de autorização, a lógica é a de favorecer a concorrência no mercado. A última proposta da ANTT para o marco regulatório inverteu a lógica”, Felipe Freire, especialista em regulação da ANTT e mestre em Engenharia de Transportes pela COPPE/UFRJ.
A concorrência é apontada – nos argumentos do TCU, do STF e, agora do Cade – como necessária para gerar mais eficiência e qualidade na prestação dos serviços de transporte, o que pode gerar tarifas mais baratas e ampliação das rotas rodoviárias no território nacional.
De acordo com a ANTT, há 15 mil mercados outorgados no Brasil, sendo quase 12 mil posteriores ao início da abertura do mercado de TRIP, em 2014. Os números indicam como o atual modelo de autorizações foi significativo para ampliar a concorrência.
O mercado de transporte rodoviário de passageiros no Brasil movimenta cerca de R$ 30 bilhões por ano. Contudo, dados da ANTT mostram que, em 2021, em 73% dos trechos interestaduais no Brasil havia apenas uma empresa operando. O que significa apenas uma opção de serviço para viajar.
ESTÚDIO JOTA – Brasília
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